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PROSTITUTA ESTAGIÁRIA

O Dia Internacional das Prostitutas é comemorado em menção ao dia 2 de junho de 1975. Na ocasião, 150 prostitutas ocuparam a igreja Saint-Nizier em Lyon, na França, como forma de denúncia das violências e perseguições que sofriam por parte das autoridades da cidade. Desde 1976, a data é celebrada em muitos lugares do mundo, inclusive nas principais capitais do nosso país.

 

No dia 9 de junho desse ano, foi realizada a Plenária Livre sobre Trabalhadoras Sexuais — Visibilidade, Direitos e Dignidade na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. Profissionais do sexo, ativistas e militantes se reuniram para discutir sobre a regulamentação da profissão, dificuldades e futuro da mesma. Três prostitutas foram palestrantes no evento: Amara Moira, Indianara Siqueira e Monique Prada, uma das referências no tema e organizadora da plenária.

Indianara, Monique e Amara na Assembléia do RS.

 

Amara Moira é prostituta, travesti e participante de movimentos que lutam pelos direitos das prostitutas e pela regulamentação da profissão e reconhece que a mesma possuí algumas falhas.

 

“A lei é muito singela. Eu gostaria que ela falasse também sobre a cobrança das diárias de rua. A cafetina, ou cafetão, fala: ‘vocês vão trabalhar aqui nessa rua? Essa rua é minha, então você tem que me pagar tal valor por dia’. A própria polícia faz isso, eles cobram pela proteção. E aí vira um serviço de segurança particular”. Ela comenta também sobre a situação das travestis, que com uma expectativa de vida muito baixa, nem sempre poderão usufruir de benefícios como a aposentadoria. “Isso mostra um pouco sobre o público alvo da proposta”, diz.

Porém, apoia a regulamentação como um enorme avanço na concessão de direitos das prostitutas. “O bom de ter um projeto de lei que visa prostitutas é mostrar que as prostitutas têm direito a ter direitos. Isso já é algo bom para nós enfrentarmos melhor esse estigma”.

 

Amara  Moira nos recebeu na tarde do sábado 15 de agosto, em seu apartamento na zona sul de São Paulo. De Campinas, no interior do Estado, ela é transexual, um dos principais nomes ativistas que defendem a regulamentação e autora do blog e se eu fosse puta?. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                                                         foto: arquivo pessoal

 

Amara está com 30 anos e começou a transformação aos 29. Aos 18, admitiu ser bissexual e começou a fazer parte de coletivos LGBTs e relacionados na UNICAMP, onde estuda há dez anos e está concluindo seu doutorado com uma bolsa de estudos.

 

A primeira tentativa de transformação foi uma falha há três anos atrás. Por conta própria, começou a tomar hormônios e bloqueadores de testosterona mas só por duas semanas. A idade com que ela decidiu fazer a mudança de gênero é bem tardia se comparada com a maioria dos casos. Isso porque Amara sofria de transfobia, o medo de se tornar trans, porque também tinha muito medo de ter que se tornar uma prostituta. “A sociedade inteira é transfóbica. No mercado de trabalho, não existe lugar para nós nem quando ainda estamos dentro do armário, imagina quando nos assumimos? Se sou travesti, automaticamente sou puta”. Atualmente, 90% das transexuais brasileiras estão envolvidas com prostituição.

 

A consciência de que vivemos em uma sociedade transfóbica faz com que ela consiga lidar com as tensões familiares, que cresceram depois que ela começou a se prostituir. Logo no início do processo, Amara saiu da casa dos pais e até hoje mora em uma república com alguns amigos.

 

Todo o medo interior fizeram com que a militante retardasse muito todas as suas decisões. A primeira tentativa de prostituição aconteceu cinco meses depois da transformação, e deu errado. Segundo ela, a experiência foi péssima e desestimulante. Um mês se passa e ela tenta de novo. “Não foi por dinheiro. Eu tenho a bolsa-doutorado, então consigo me sustentar. Foi uma questão de toque, de carência. O primeiro dia foi horrível, não consegui nenhum cliente. Mas aprendi como faz. Tem toda a questão da lábia, de mexer com o ego do cliente, é um jogo”. Desde que a conversa começou, ela admitiu que entrou na prostituição pelo desequilíbrio emocional, para melhorar sua autoestima e principalmente, para ter uma aceitação no círculo social.

 

Amara tem amigas e ex-namoradas que vivem em Itatinga, o bairro da prostituição em Campinas, uma área completamente separada do resto da cidade. Segundo ela, essa segregação acontece tanto por parte dos cidadãos, que querem manter Campinas “limpa” e tentar esconder o que acontece, tanto por parte das putas, que encontraram uma forma de se proteger e viver em comunidade. No momento, Amara se considera uma prostituta estagiária. Como não depende disso para sobreviver mas sabe que, devido ao preconceito, é um dos caminhos que ela pode seguir no futuro, ela frequenta o bairro uma ou duas vezes por semana, geralmente aos finais de semana. Assim, convivendo no mesmo ambiente, ela vai aprendendo como tudo funciona, desde como pegar um cliente até a conversar em Bajubá, a língua das prostitutas. Ela admite que acontece certa diferenciação por conta da sua classe social e situação acadêmica, tanto por parte dos clientes como das próprias colegas. “Lá eu sou respeitada pela militância. Tô sempre viajando, estudo, apareço na TV. A maioria delas nem concluiu o ensino secundário. Vez ou outra, algum cliente solta “você é muito branquinha pra tá aqui””.

 

Questionada sobre estar realmente preparada para ser puta, ela afirma que sim. “Isso vai muito do limite de cada um. Se a maioria das meninas daqui fossem procurar um emprego formal, não iam conseguir nada bom porque não são estudadas. Eu tenho mais chance nesse aspecto, mas meu doutorado não impede que as pessoas sejam preconceituosas. Se precisar, vou ter que escolher. E aí voltamos para os limites: eu prefiro me prostituir do que limpar banheiro”. E Amara realmente fala sobre o assunto com muita naturalidade. “Eu tenho que estar preparada para essa realidade e não quero que isso aconteça da noite pro dia. Ai vou tentar ir para os mercados mais rentosos de prostituição: sites, anúncios, fetiches. Nossa, adoraria que aparecesse um cara querendo apanhar! Ia dar até desconto pra ele!”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                                                                            foto: arquivo pessoal

 

Essa frase, implicitamente, reflete uma das maiores dificuldades da profissão: sua vulnerabilidade. A expectativa de vida para as travestis é de 35 anos. Amara é uma exceção porque entrou nesse meio mais tarde do que o normal. “É só ver o medo geral de todas as mulheres de serem confundidas com prostitutas. Isso não é só uma questão cultural, mas também de sobrevivência”.

 

Ela conta que muitos clientes acham que, por estarem pagando pouco, podem fazer o que bem entenderem com as meninas. “As putas de luxo, as mais caras, geralmente são mais respeitadas. Só porque aqui é o esquema do vintão, eles acham que podem abusar. Mas não é assim. Têm que entender que nós não oferecemos um corpo, mas sim um serviço”.

 

Com essa declaração, entramos no tema discutido: a regulamentação da prostituição. Amara diz que é um serviço como outro trabalho qualquer. Acontece a luz do dia, é a profissão mais antiga do mundo e mesmo que tentem, ela não vai desaparecer. “Sexo é uma das coisas mais importantes na vida das pessoas. Sempre vai ter alguém a procura. Independente de regulamentado ou não, é um trabalho que nunca fica sem demanda”. Nesse contexto, ela sita a Holanda como exemplo. Lá, a profissão é autorizada pelo Estado, que lucra certa porcentagem, como acontece aqui no Brasil com as contribuições anuais que todos trabalhadores devem pagar. Segundo ela, um dos problemas aqui é exatamente esse, o custo que a regulamentação traria para o Estado.

 

Os custos e a violência são os principais problemas para as prostitutas, principalmente travestis, que vivem em situações como em Itatinga. No caso delas, as trans pagam diariamente R$ 50 para morarem e comerem no local, sendo que as prostitutas não-trans não pagam nada. E a violência acaba sendo encoberta pelo próprio local, que muitas vezes dá propina para a polícia manter a segurança na região. A partir do momento que a casa de prostituição cobre, as mulheres não conseguem denunciar os clientes porque eles são anônimos. Amara também fala do machismo por trás de tudo isso, já que “prostituta não é estuprada”. “É a culpabilização da vítima. Só porque trabalhamos com sexo, não significa que queremos fazer o tempo todo e com todo mundo. Acabamos reprimindo qualquer tipo de denúncia porque sabemos que vamos escutar coisas como “quem mandou ser puta?””.

 

Também é bem forte a violência verbal. A entrevistada dá como exemplo o metrô de São Paulo. “Não sei porque, mas não acontece tanto na rua ou nos ônibus, mas andar de metrô aqui é impossível. Vocês, que são meninas, devem saber como os homens se comportam, né? Com travestis é três vezes pior. Um cara já se masturbou por dentro da roupa no vagão enquanto me olhava”.

 

No decorrer da entrevista, Amara citou tantos os termos transexual como travesti. Ela explica a diferença: “em alguns registros, são sinônimos. Mas transexual é uma palavra muito mais limpinha, muito mais aceita. Vem do âmbito médico. Travesti é a própria comunidade de pessoas que foram excluídas e segregadas. Percebem a violência disso? Uma pessoa que não é dizer o que a gente é. Por conta disso, a militância trans cunhou o termo cis para nomear o oposto. Trans é uma metáfora, é aquilo que atravessa. Cis é o que permanece do mesmo lado”.

 

Hoje em dia, Amara se considera pansexual, ou seja, se atrai pelas pessoas independentemente do gênero sexual. Ela conta que passou um longo período longe de realcionamentos, principalmente por conta da falta de libido provocada pelos remédios. A dificuldade de se relacionar também atingiu o meio virtual. Amara criou sua página no Facebook tem pouco mais de 2 anos. Seu blog serviu como válvula de escape para desabafar e fugir do cotidiano, e ela até brinca com isso na descrição do site “travesti que se descobre escritora ao tentar ser puta e puta ao bancar a escritora.”

 

Antigamente, Amara era Omar. “Cinco anos atrás estava lendo uma tradução de Homero e ele cita Moira Amara, que significa Destino Amargo. Uma combinação incrível que combinava com meu nome de registro, Omar. Ao longo do tempo, fui brincando com ele. Omar. Humor Omar. Amar Omar. Amara Moira era o complemento esperado. Rompe, mas ao mesmo tempo, permanece”.

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